segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A estupidez da regulamentação estatal de profissões: estudo de caso (real)

“Tente levantar algumas dúvidas a respeito da moralidade destas instituições. ‘Você é — dir-lhe-ão — um inovador perigoso, um utópico, um teórico, um subversivo, você está abalando as bases sobre as quais repousa a sociedade’” (Frédéric Bastiat)

Acabei de chegar de uma reunião na sede da OAB, aqui em Brasília-DF. Era uma reunião de uma comissão específica, não do Conselho Federal. Quando surgiu o assunto “filiação obrigatória de advogados públicos à OAB” e coisas afins, pedi para fazer um aparte. Adiantei que eu era absolutamente contra a filiação compulsória de qualquer advogado – público ou privado – à OAB e pedi uma reflexão dos meus colegas, falando mais ou menos o seguinte: “vocês concordam em obrigar uma pessoa que quer exercer a advocacia a se filiar a uma determinada entidade? Mais ainda: vocês concordam que essa entidade deve ser monopolista do direito de qualificar alguém como advogado?”.

A revolta foi geral. Éramos uns oito, e percebi que praticamente todos discordaram veementemente da minha posição. Um deles pediu a palavra e começou a divagar sobre a importância da advocacia e da profissão do advogado. Disse que a advocacia foi eleita pelo legislador constituinte como função essencial à justiça, e que por isso o estado tem legitimidade para regular o exercício dessa profissão. Jargões jurídicos conhecidos foram mencionados às pencas, também por outros colegas que se manifestaram depois.

Novamente com a palavra, eu disse que já imaginava a reação contrária à minha posição e que já imaginava, também, que os advogados logo se sairiam com teses muito bem boladas para manter o cartel e a reserva de mercado, sempre com argumentos nobres, como a defesa do consumidor.

Nessa hora a revolta foi maior ainda. Disseram basicamente a mesma coisa que haviam dito antes, mas com outras palavras: a advocacia é função essencial à justiça etc. Vendo que, principiologicamente, minha tese – defesa da liberdade de exercício de qualquer profissão – é irrefutável, restringiram o debate a uma questão meramente jurídica: a Constituição diz isso e ponto final. “Foi uma decisão do legislador constituinte, a qual, portanto, representa um interesse da coletividade...”, disseram meus colegas.

Finalizei questionando a eles o seguinte: "João quer contratar José, que não é filiado à OAB, para defendê-lo em juízo. Por que ele não pode fazer isso?". Para cada resposta gaguejada por eles, eu insistia: “mas João quer contratar José”. Eles repetiam seus argumentos, e eu rebatia: “mas João quer contratar José”. Falei isso umas cinco vezes. O mais exaltado dos meus debatedores perdeu a calma e esbravejou: “a Constituição não deixa!”. Depois disso, outros colegas, expressando concordância com a opinião dele, complementaram afirmando que nesses casos é legítima a intervenção do estado na autonomia da vontade etc.*

Então eu finalizei minha fala, com muita calma, dizendo: “João me disse que é muito grato pela preocupação de vocês, mas ele prefere que vocês cuidem de suas vidas e deixem-no contratar José em paz”.**

Foi aí que aquele mais exaltado colega se saiu com um argumento realmente chocante, data maxima venia: “João consentiu com a limitação de sua autonomia da vontade; afinal, ele é um constituinte originário”. Para quem não é da área jurídica, ele se referia ao fato de que o Poder Constituinte originário, exercido pela assembléia nacional constituinte ao promulgar a Constituição, emana do povo, diretamente ou por meio de seus representantes, e como João é um membro do povo, a sua vontade está manifestada lá no texto constitucional.***

No final, quando estava na porta do elevador, uma advogada que estava presente à reunião, mas que não se manifestou no acalorado debate, apertou minha mão e disse: “parabéns, doutor André”. Não sei se ela concordou com minha defesa ou se admirou apenas o fato de eu ter defendido uma tese tão minoritária no âmbito da minha corporação.

Essa história é real.

André Luiz Santa Cruz Ramos

* Eu alertei que a leitura da Constituição que eles fazem não é uma unanimidade, já que o Ministério Público Federal acabou de emitir parecer opinando pela inconstitucionalidade do nefasto Exame de Ordem, por exemplo.

** Na verdade, como eu já disse em texto recente, meus colegas advogados estavam apenas se comportando como tutores da liberdade alheia.

*** É a velha tese de que o governado consente com os atos do governo, já que “assinou” o tal contrato social.

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