segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A veia libertária de Monteiro Lobato.


Ontem eu li um texto sobre Monteiro Lobato, escrito pelo meu colega de magistério Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Recomendo a leitura: "para Lobato, advogado é inseto que faz plantas secarem".

Ao ler o texto, pude perceber que o grande escritor Monteiro Lobato tinha uma veia libertária e tanto, e a exercia com maestria em vários contos em que criticava de forma veemente o fisco e o funcionalismo público. Vejam essas passagens do texto do professor Godoy:

"Lobato foi um crítico mordaz do modelo tributário. Em Idéias de Jeca Tatu ao descrever a chegada da família real portuguesa no Brasil, Lobato chama a atenção para o desembarque de um personagem:

O Fisco — um canzarrão tremendo de dentuça arreganhada 3 é conduzido no açamo por vários meirinhos.

E, em outra obra, verificava no Fisco uma herança portuguesa:

Portugal só organizou uma coisa no Brasil-colônia: o Fisco, isto é, o sistema de cordas que amarram para que a tromba percevejante siga sem embaraços. Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro diante do maquiavélico engenho luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro ramais; cordas de cânhamo, de crina, de tucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e cordas de enforcar.

E continua, agora a propósito do Imposto de Renda:

A invenção do novo borzeguim — imposto de renda — excede a tudo quanto saiu da cabeça dos inquisidores: a vítima ignora o que tem de pagar e se não paga com exatidão incide em pena de confisco! E se em desespero de causa pede ao Fisco que lhe explique o mistério, que lhe dê a chava vertical e horizontal do quebra-cabeças, o marquês de Sade sorri e responde diagonalmente: — Pague com cheque cruzado, e explica com grande ironia de detalhes como se toma de uma régua, duma pena molhada em boa tinta e como se cruza um cheque.

A ironia é implacável. O suposto devedor, ao perguntar por que deve, tem como resposta o como pagar. É a imagem da repartição pública onde o devedor, ao questionar fato gerador, base de cálculo, lançamento, multa, juros de mora, tem como resposta o regular preenchimento de um guia de recolhimento. Para Lobato, a imposição tributária é perene na vida do cidadão. Começa bem cedo, com as primeiras providências do dia, nos hábitos, nos vícios:

Pela manhã, ao acender o primeiro cigarro, tem que gastar o esforço de duas unhadas para romper o selo com que o fisco tranca as caixas de fósforo e os maços de cigarro.

O escritor defendia a vinculação tributária. Não há como, segundo ele, tributar sem se oferecer uma contraprestação. É o que se subsume da passagem:

O imposto não se justifica sem uma equivalente prestação de serviços. Fora daí é puro roubo.

Lobato era irredutivelmente agressivo para com o Fisco, que qualificava com os mais negativos impropérios. Escreveu:

Que é o fisco senão um “sistema de embaraços” opostos à livre atividade do homem, que deles só se livra por meio de entrega ao Estado de uma certa quantidade de dinheiro.

A tributação, para Lobato, vislumbra iniquidades que mudam o rumo da história. A Inconfidência Mineira é um exemplo e Lobato sugere outro, tomado da história universal:

A história da civilização cabe dentro da história do Fisco. Grandes convulsões sociais, como a Revolução Francesa, tiveram como verdadeira causa as iniquidades do Fisco.

Não há prazer no recolhimento, para Lobato, principalmente quando não se tem nada em troca. A obrigação tributária, para Monteiro Lobato, é odiosa:

Pagar impostos é coisa desagradável porque significa dar moeda em troca de coisas que não nos aproveitam diretamente. Em todos os tempos o homem sempre fugiu de pagar impostos. Paga-os compulsoriamente.

Lobato acreditava que além das imposições compulsórias em moeda havia também outra imposição, que da nação tirava trabalho e esforços. Porém, vale-se de imagem metafórica, comparando o esforço que o Estado tira das pessoas com o esforço decorrente da abertura da caixa de fósforos, lacrada com o selo do imposto de consumo. Vejamos a passagem:

— O esforço que acabo de fazer para abrir esta caixa de fósforos repete-se no Brasil 5 milhões de vezes por dia. Supondo que um quilogrâmetro de força muscular dê para abrir 200 caixas, teremos um dispêndio de 333 cavalos-vapor para abrir os 5 milhões de caixas que se abrem diariamente, ou sejam, num ano, 121.500 cavalos. É o esforço, o dispêndio inútil de energia que um simples selo, grudado às caixinhas de fósforos, exige do país.

No livro Negrinha, Lobato estampou um conto, chamado O Fisco, onde se vale da ficção para chicotear as iniqüidades tributárias que tanto combatia. A estória se passa em São Paulo. Um menino, de família humilde, maltrapilho, com sua caixa tosca de engraxate, feita pelas próprias mãos, pensou em ajudar a família, trabalhando como engraxate, nas ruas de São Paulo. O garoto, sem autorização da Prefeitura (e ele nem sabia o que era ou porque havia necessidade disso) fora surpreendido pelo fiscal:

— Então, seu cachorrinho, sem licença, heim? Exclamava entre colérico e vitorioso, o mastim municipal, focinho muito nosso conhecido.

E continua Lobato:

A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais.

A família, muito pobre. Após narrar os dramas dessas famílias, que viviam no Brás, no início do século, Lobato imagina a criança de volta para a casa:

Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca.O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.

E a mulher teve de pagar:

Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente — dezoito mil réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os ao Fisco.

Lobato, ainda, anota o epílogo, começa com o Fiscal:

E foi à venda próxima beber dezoito mil réis de cerveja.

Por fim, quanto ao menino:

Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.

O conto dimensiona, a partir de uma questão tributário-administrativa, o problema da justiça. Lobato valeu-se do conto para expressar sua opinião sobre um funcionalismo corrupto, arrogante e ineficiente. Edgard Cavalheiro reproduziu em sua biografia passagem de Lobato, que qualifica a premissa:

Não há serviço público que não empregue cinco homens, pessimamente pagos, para fazer, malfeitíssimamente, a tarefa que um só, bem pago, faria a contento.

A concepção tributária de Lobato é muito próxima de suas ideias de justiça. Como homem de negócios, de ação, pôde Lobato viver, de experiência própria, os efeitos nefastos de um modelo tributário agressivo e ineficiente. No conto O Fisco, Lobato dimensionou a questão em nível de drama humano, que vivera ao longo de sua vida de homem de negócios. Para o escritor, a miséria radicava na desigualdade da distribuição dos bens, que, poderia ser mitigada por um sistema tributário mais humano. Escreveu Lobato:

— E que é a miséria senão a consequência última da injustiça na distribuição dos bens?

A guerra que Lobato fazia ao fisco (e que de certo modo tem resultados, dada a imunidade tributária dos livros, que tanto defendeu) é mais uma faceta de seu espírito combativo. A circunstância traduz, identificando sistemática oposição à imposição tributária irracional, mais uma perspectiva de desilusão jurídica.

Lobato acreditava que a vida do operador jurídico é vazia porque as condições determinantes da justiça são estruturais, dependentes da justiça econômica, fundamentada na boa distribuição de renda. Imaginava nosso Brasil um país de tavolagem e em crônica, que leva esse nome, escreveu:

Evidente, pois, que só uma solução existe para todos os problemas nacionais: a indireta, a solução econômica. Só a riqueza traz instrução e saúde, como só ela traz ordem, moralidade, boa política, justiça."

Grande Monteiro Lobato! Gostei demais da parte em que ele destaca que a tributação vislumbra iniquidades que mudam o rumo da história. Nada mais atual do que essa afirmação, hein? Afinal, o impostômetro está perto de chegar à marca de R$ 1 trilhão (se é que não já chegou...) e ainda se fala na recriação da abominável CPMF. Vamos ficar parados?

P.S.: se Monteiro estivesse vivo, teria o desprazer de saber que os estatistas estão querendo censurar suas magníficas obras, com base nessa moda ridícula do "politicamente correto".

André Luiz Santa Cruz Ramos

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