segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Quando dois mais dois são cinco

Os direitos a vida, a liberdade e a propriedade são os fundamentos basilares de um sistema justo. Eles consistem em garantir a todas as pessoas a possibilidade de buscarem os objetivos que as próprias traçam para si mesmas, desde que tais objetivos não atentem contra os direitos dos demais. Contudo, nos últimos anos, compreender o significado tão simples desses valores tão essenciais ao seres humanos tem se mostrado de uma dificuldade homérica por parte de muitas pessoas. Essa situação tem por culpa de maneira específica o Estado e suas leis claramente confusas.

George Orwell, um jornalista e escritor que viveu no século XX cujo verdadeiro nome era Eric Arthur Blair, é o autor de diversas obras críticas aos desmandos autoritários dos governos e aos perigos inatos das ideologias. Seu principal livro é 1984, onde o autor descreve uma sociedade controlada em todos os níveis pelo Estado. Nele, acompanhamos a luta diária de Winston para se manter vivo da constante vigilância empreendida pelo poder estatal a fim de coibir qualquer ato, opinião e até mesmo pensamento que não estivesse de acordo com o estabelecido pelo Estado. O termo popularmente mais famoso dessa obra é o Big Brother (homônimo ao de um conhecido reality show nacional), o qual faz referência ao líder dessa sociedade que estampa vários cartazes espalhados pelo país com os dizeres “O Grande Irmão está observando você”.

Quando Orwell escreveu o livro que mais te deu fama, o mundo estava mergulhado na Guerra Fria. De um lado o sistema socialista soviético; do outro o sistema capitalista americano. As duas potências mundiais lutavam constantemente entre si (até mesmo militarmente, mas jamais diretamente) para demonstrar a superioridade do seu próprio sistema sobre o do rival. O medo constante do estouro de uma 3ª guerra mundial era bastante plausível. Atualmente, em um mundo multipolar, onde o modelo democrático tornou-se a regra ao menos no Ocidente, os perigos que nos cercam são de outra natureza.

Outro termo da obra de Orwell, este já não tão notório, é o duplipensar, o qual consistia, basicamente, segundo a definição fornecida pelo personagem principal, em:

“Saber e não saber; Ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas; Defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade (...); esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar.”

O duplipensar orwelliano era ao seu tempo um aviso duro a nossa sociedade; Um alerta constante a preservação do significado das palavras e o uso para qual o Estado as destinava. No livro, o Partido, ente que controlava essa sociedade totalitária, tinha três lemas principais: “Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força.” Ao embaralhar os conceitos dessas palavras, utilizando-as de maneira contraditória e ao mesmo tempo, sendo acatado por todos, o Estado detinha o poder de controle sobre a consciência dos indivíduos, fazendo-os acreditar em qualquer coisa que este afirmasse, não importando nenhum um pouco se tais declarações fizessem sentido ou fossem ilógicas. Não surpreende assim que os quatro ministérios daquele governo também se utilizassem do duplipensar: o Ministério da Verdade era o responsável por fabricar e sustentas as mentiras oficiais; o Ministério da Paz cuidava das guerras; o Ministério do Amor mantinha a ordem e a lei, prendendo e eliminando todo e qualquer opositor do regime; e o Ministério da Fartura era responsável pelo racionamento de todos os produtos disponíveis, desde os alimentos até o vestuário e materiais de higiene.

Numa sociedade plural, justa, democrática e fundada no Estado de Direito, a defesa das liberdades individuais é essencial; Essencial porque há sempre o risco de que a maioria do turno, aquela que elege os governos nas eleições, utilizem-se do poder do Estado para violar os direitos das minorias. A igualdade de todos perante a lei, o direito a propriedade, o direito a vida, a liberdade de expressão, todos compõe uma gama de mandamentos constitucionais cujo objetivo é os de justamente coibir qualquer rasgo autoritário dos governos eleitos democraticamente, sejam eles de direita ou de esquerda.

Contudo, o que se pode notar hoje em dia, é uma relativização constante dos direitos e garantias individuais, sempre em busca de uma tal “justiça social”. A Constituição Federal assevera que todos devem ser tratados igualmente pelo Estado, mas ao mesmo tempo são criadas e aplicadas leis que criam privilégios a determinados indivíduos e grupos, como é o caso das cotas. A Constituição Federal afirma que é garantido o direito a propriedade, mas a mesma a condiciona a uma certa “função social”, um conceito extremante vago e impreciso. A Constituição Federal garante a liberdade de expressão em todas as suas formas, mas o Estado impõe ao mesmo tempo o combate a idéias e opiniões consideradas “subversivas” e criminosas, justificando essa atitude em nome de um princípio também bastante vago, o da “dignidade da pessoa humana”.

Durante os últimos dois meses foi possível notar como o duplipensar esta arraigado nas mentes dos cidadãos brasileiros. Quatro casos chamam a atenção em especial: no primeiro, uma universitária que trabalhava como professora acusou de racismo uma escola porque, segundo ela, a diretora a teria ordenado que alisasse o seu cabelo, para que este ficasse de acordo com as normas sociais do colégio; no segundo, uma jovem do estado do Rio Grande do Sul postou mensagens preconceituosas no Twitter direcionadas aos nordestinos; no terceiro, uma enfermeira foi filmada pela sua empregada doméstica espancando várias vezes seu cão de estimação até a morte; e no quarto e último, a aprovação pelo Congresso Nacional da “Lei das Palmadas”. Em ambas os casos, a reação da sociedade foi imediata, como as várias mensagens na internet de desprezo e repugnância ou de apoio e concordância com estes atos. Entretanto, o problema aqui não consistiu nessa mobilização digital, a qual é totalmente válida justamente em face do direito a liberdade de expressão o qual todos gozam, mas sim nas medidas que estes clamavam ao Estado que, por meio do Ministério Público, tomasse em relação a essas situações.

No caso da moça “vítima de racismo”, surpreende pelo óbvio: porque alguém que não se sente confortável ou discorda de determinada regra adotada por uma entidade, no episódio a escola, permaneceria trabalhando neste local? Ninguém é obrigado a trabalhar para um racista, assim como para qualquer outro tipo de pessoa. Aliás, sendo a diretora do colégio a pessoa responsável pelo gerenciamento daquela propriedade, cabe a ela legitimamente determinar quais são as regras válidas e que devem ser obedecidas naquele estabelecimento. Funciona da mesma forma na casa das pessoas: cabe a cada um determinar quem pode ingressar em sua propriedade e como este deve agir quando estiver dentro dela, sob o risco deste ser convidado a se retirar (leia-se: ser legitimamente expulso). Ou seja, discriminar é, para além do uso da liberdade individual, uma política essencial dos direitos de propriedade. Contudo, para muitos há uma diferença entre esses casos, especialmente para o Estado. A mesma lei que afirma na Constituição que o lar é asilo inviolável do cidadão e que garante o direito de propriedade (e consequentemente todos os poderes inerentes a essa condição jurídica) impõe um tratamento diferenciado entre propriedades, fundamentando-se sempre na idéia da “função social da propriedade”, a qual suspende o direito de poder discriminar. Neste caso inclusive, a uma clara tomada de lado na natureza da própria lei contra o racismo, já que até hoje nenhum negro foi condenado por ser racista com um branco, como se apenas esses últimos fossem os racistas em potencial. É, portanto, o duplipensar aplicado ao direito de propriedade e o da igualdade de todos perante a lei.

Quanto a garota racista no Twitter, outra surpresa, afinal ela apenas exerceu seu direito constitucional a liberdade de expressão. Esse direito, ao contrário do que muitos imaginam, não significa que o indivíduo pode expressar somente aquilo que a maioria considera legal, tolerável ou moral, mas garante justamente a possibilidade de poder defender o intolerável, o imoral e, até mesmo, o ilegal (aliás, se isso não fosse possível, as leis seriam imutáveis, já que a discordância não seria admitida nunca). O grande teste do respeito ao direito a liberdade de expressão passa precisamente por defendê-lo quando este é aplicável àqueles que discordamos veementemente. Como bem apontou o escritor Philip Pullman no lançamento de mais um dos seus livros polêmicos, ninguém é obrigado a concordar com ele, nem se silenciar por causa do que ele defende, mas não é admissível ir para além disso. Qualquer tentativa de criminalizar opiniões ou censurá-las sempre irá ferir de morte o direito a liberdade de expressão dos indivíduos. Isso, contudo, não tem impedido o Estado de condenar pessoas por expressarem suas idéias racistas e preconceituosas, calcando essas decisões em nome do princípio da “dignidade da pessoa humana”. É, portanto, o duplipensar aplicado ao direito de liberdade de expressão.

O caso da mulher que matou seu animal de estimação é o mais peculiar de todos. Inúmeras mensagens no Twitter e no Facebook defendiam que ela merecia ser agredida, presa e até morta em razão do seu ato inegavelmente covarde. A idéia, claro, parte novamente não só da sociedade como das leis atuais, que protegem todos os animais de serem maltratados, garantindo-lhes o “direito” a vida e a preservação de sua integridade física. De fato, as normas de direito penal buscam sua legitimidade no ordenamento nacional nos atos considerados criminosos pela sociedade, que na realidade significa mesmo a maioria da hora ou a minoria com influência política, jamais sua totalidade. Ao se negar que animais não passam de propriedade dos seus donos (se assim não o fossem, essa terminologia inclusive não faria sentido algum), elevando-se esses animais a categoria de sujeitos de direito, colocasse no mesmo patamar uma pessoa inválida, em coma e um recém-nascido com um ser cuja espécie é inerentemente irracional, ou seja, não cumpre nem poderia potencialmente cumprir com os requisitos básicos para o exercício dos seus direitos e dos seus deveres como qualquer ser humano. Aliás, não é possível ignorar que tem crescido de maneira impressionante aqueles que defendem fortemente os “direitos” dos animais, mas ignoram completamente os problemas mais, por assim dizer, humanos, como é o caso da escalada da criminalidade em nossa sociedade, que ceifa milhares de vidas anualmente somente nesse país. Quanto a esses problemas, nenhuma corrente virtual é mobilizada ou é digna de atenção. É, portanto, o duplipensar aplicado a toda essência principiológica do ordenamento jurídico (humano).

Por fim, resta abordar a famigerada “Lei das Palmadas”. Com o intuito oficial de preserva a integridade física das crianças e adolescentes, o Estado resolveu interferir (novamente) no âmbito privado, em especial nas relações familiares e como estas se desenvolvem. A referida lei transformou em crime qualquer ato de agressão direcionada aos menores de idade em passível de punição aos que cometem e aos que encobrem o ato e estabelecesse tratamento psicológico para os agressores, que na maior parte dos casos, seriam os pais. Prevê também a lei que qualquer pessoa é legítima, incluindo o próprio menor, para denunciar a infração da lei por alguém. Aqui fica patente uma correlação direta com o livro 1984, já que nele as crianças são treinadas desde pequenas pelo Estado a vigiarem seus pais, fiscalizando seus comportamentos e os denunciando por qualquer ato considerado ilegal pelo Partido. É o clássico caso do “inimigo dorme ao lado”. Contudo, essa situação não seria de toda absurda, do ponto de vista lógico, se o próprio Estado não coibisse na Constituição Federal qualquer ato coercitivo, seja privado ou público, que atente contra o direito da família de estabelecer o seu planejamento familiar, incluindo a forma como os pais educam seus filhos. É, portanto, o duplipensar aplicado a preservação da incolumidade da família.

As contradições do sistema jurídico, que ao mesmo tempo são aceitas pela maior parte das pessoas, assim como no livro de Orwell, passam completamente despercebidas para a maioria das pessoas. Essas contradições estão tão arraigadas em suas mentes que elas já agem de forma inconsciente em sua defesa, sem raciocinar exatamente sobre o que realmente defendem. Esse é o perigo maior do duplipensar: quando o indivíduo já não é mais capaz de diferenciar a verdade da mentira, o real do imaginário, o lógico do ilógico. Em 1984, num determinado momento, um dos algozes de Winston levanta sua mão esquerda mostrando a ele quatro dedos e perguntando em seguida quantos dedos ele estava exibindo. Após a confirmação por parte de Winston de que eram quatro, o torturador pergunta quantos dedos teria na mão dele se o Partido disser que são cinco. Como Winston não conseguia negar o óbvio, ele é torturado inúmeras vezes em sequência. Quando a tortura tem uma pausa, segue-se o diálogo entre eles:

- Que posso fazer? – choramingou Winston. – Como posso deixar de ver o que está diante dos meus olhos? Dois e dois são quatro.

- Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às vezes são três. Às vezes são as três coisas ao mesmo tempo.

Adriel Santos Santana é estudante de Direito na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

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